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Resenha "Pré-histórica"

Tudo o que é vivo, tem a sua própria história, e cada história tem o seu começo. Os primórdios das histórias, quando longínquos, estão, muitas vezes, envoltos numa névoa que nos dificulta e impede de ver, com clareza, os contornos dos factos e da verdade.

Por isso, todas as investigações bibliográficas, quaisquer que elas sejam, estarão sempre predestinadas a ficarem incompletas, ou, dito por outras palavras: é sempre possível fazer melhor... até à obtenção da Certidão de Nascimento Narrativa Completa, e definitiva, de toda essa mesma história.

Esta história que queremos, hoje, contar, não escapa a essa lei, tanto mais quanto escassas são as "fontes" onde ir "beber" informações para a compilar.

Naqueles recuados tempos, as modalidades desportivas, eram, compreensivelmente, em reduzido número, tal como limitadas eram as condições para a sua pratica.

Mesmo assim é-nos possível coligir daqueles tempos, notícias e relatos pormenorizados, e bem interessantes, sobre por exemplo: corridas pedestres, de cavalos e de bicicletas, gincanas, torneios de ténis, de caça e de natação, regatas, garraiadas e touradas!

Ficaram memoráveis, por exemplo: as Regatas Reais de 7 e 8 de Setembro de 1902 e as de 15 a 16 de Agosto de 1903; umas corridas pedestres, em Setembro de 1907, entre a Estação da Senhora da Hora e o Posto Fiscal da Circunvalação; uma corrida de bicicletas na Estrada da Circunvalação, ou ainda, de entre umas quatro "famosíssimas Garraiadas", entre 1902 a 1907, na Praia de Touros de Matosinhos (por detrás da Capelinha do Senhor da Areia), urna muito especial em Agosto de 1907 promovida por um grupo de ilustres cidadãos de Matosinhos, a favor da iluminação da Rua de Brito Capelo.

Para ilustrar ainda melhor os contrastes acrescentemos que nesses tempos os prémios a troféus para os vencedores consistiam muito simplesmente em: «uma bonita a bem trabalhada medalha em prata fosca e esmalte, mandada cunhar em Lisboa; um custoso estojo de toillette; uma bela cigarreira de couro ou ainda uma corbeille com 2 garrafas de vinho velho do Porto, etc.»

Concretamente sobre futebol, de entre as tão poucas e dispersas notícias que é possível respigar, seleccionamos estas que vamos transcrever, na esperança de nos ajudarem tanto na referenciação das datas como a imaginar como seriam os ambientes desportivos em Matosinhos - Leça de então.

De um artigo publicado em O Tripeiro, e assinado por Mário de Faria a Mello Duarte (de Aveiro) extraímos uma notícia bem preciosa, muito provavelmente a notícia disponível com referências mais antigas e bem explícitas quer ao futebol, quer a Matosinhos. Reza assim:

«O primeiro desafio de futebol a sério no Norte de Portugal, e possivelmente também o primeiro desafio entre grupos de duas cidades, teve por palco o Hipódromo de Matosinhos (por não haver ainda um campo de futebol no Porto), na tarde do dia 8 de Dezembro de 1898 ... entre os grupos do “Gymnásio Aveirense” e do “Real Velo Club do Porto”.»

Seguem-se as composições de ambas as equipas, e, curiosamente, nenhuma referência nem ao resultado final nem ao árbitro da partida!

No seguimento do conteúdo desta noticia, vale também a pena transcrever o que os nossos monografistas, Godinho de Faria e Guilherme Felgueiras, nos legaram escrito sobre tão fascinante Hipódromo de que Matosinhos outrora dispôs, em terrenos repletos de juncíneas, lá para os lados do Prado:

«O Hipódromo de Matosinhos tinha a sua pista no areal do Prado, e abrangia parte do perímetro onde ao tempo vegetavam largamente as juncíneas, ocupada hoje pelas Ruas de Brito e Cunha, Mouzinho de Albuquerque e Avenida Meneres (Juncal de Cima).

O recinto era dominado por uma Tribuna e circundado por alta vedação de madeira. Em Outubro de 1886 ainda se anunciavam corridas de cavalos em Matosinhos, tendo algumas despertado vivo interesse.

Pertencia ao Jockey Club Portuense que se liquidou em 85 dando à Câmara os terrenos necessários para os arruamentos constantes de uma planta elaborada em harmonia com a da Companhia Edificadora, que Deus haja ...»

Esclarecedor.

De uma entrevista concedida pelo excelente desportista matosinhense que foi Américo Pacheco e publicada no jornal “Stadium”, extrai-se o começo da história, muito bem explicado:

«Um dia, em 1902 (tinha Américo Pacheco uns 12 anos de idade), apareceu em Leixões, a passar as férias anuais, um cavalheiro nosso patrício, vindo de Inglaterra, onde estudava. Era o Sr. Durval Martins que seu pai ali o mandara educar. E trouxe consigo uma bola de borracha com capa de coiro, objecto desconhecido para todos, e muito menos se sabendo para que efeito ... Demonstrada a sua utilidade ... começamos aos pontapés a ela, a bola ... E a rapaziada de Matosinhos agrupou-se para constituir a base de um grémio que pudesse dar forma aos então desejos de todos os amigos, para iniciarmos uns jogos a sério ... e demos-lhe o título de “Leixões Foot-Ballers”.

Sobre estes últimos, ainda é possível dizer que num domingo de Março de 1907, pelas 10 da manhã, no campo de jogos do Foot-Ball Club do Porto se realizou “um match” entre o 2º “team” do mesmo e o 2º do “Grupo Leixões Foot-Ballers”.

Por todas as razões e mais algumas valerá a pena também acrescentar os nomes desses “artistas” assim como os postos em que “actuaram”, tal e qual apareceram escritos na altura. Assim: a “goal-keeper”, Aloysio Paiva; a “full-backs”, Joaquim Basto Júnior e Ruy Teixeira; a “half-backs”, Alexandre Alves da Silva, Dick Lowe e Júlio Gama; a “forwards”, Napoleon Marr, Paes Teixeira, Adolpho Gesta, Danvers e António Leite de Faria. O “match” foi disputadíssimo com um “goal” de parte a parte.»

Mais uma vez, nada acrescentavam sobre o árbitro.

Neste momento, tanto quanto, através dessas noticias, nos é possível comprovar, podemos afirmar com segurança, que o Leixões Sport Club nasceu, efectivamente, no ano de 1907 (ainda em tempo da Monarquia, portanto) e nasceu como um bom exemplo do que podemos baptizar de uma “concordata” pacífica, e profícua, entre três pequenos grupos desportivos que, então, existiam, em Matosinhos.

Antes de tudo o mais, devemos, pois, começar por realçar esta original forma do nascimento do Leixões Sport Club, como um exemplo nobre, e uma prova inequívoca do espírito aberto, generoso e arrojado dos promotores de tão singular acordo, de tão “notável empreendimento”, como na ocasião foi noticiado.

Por isso, os nomes dessas pessoas que então colocaram o interesse de Matosinhos à frente dos interesses dos seus pequenos clubes, deveriam figurar em lugar de destaque na galeria da memória colectiva não só do Leixões Sport Clube, como da própria cidade de Matosinhos.

Os três mencionados grupos precursores e fundadores do Leixões Sport Club, e por onde a juventude local, de então, se distribuía para a prática saudável do desporto, eram:

1 – Grupo Lawn – Tennis Prado

2 – Grupo Lawn – Tennis de Matosinhos

3 – Grupo Leixões Foot-Ballers

Bastam os nomes para se depreender que dois deles se dedicavam à prática do “Lawn-Tennis” e apenas um ao “Foot-Ball”.

Os grupos não seriam, naturalmente, todos da mesma idade, Mas qual terá sido

o primeiro, e quando, a surgir! Tal dúvida, perante a tão escassa bibliografia disponível, não foi possível esclarecer!

Se bem que a ideia da junção já andasse, desde há muito, no ar, foi numa quinta-feira, à noite, em 18 de Novembro de 1907, em reunião presidida pelo Sr. José Meneres, e secretariada por Dr. Eduardo Torres e Henrique Carneiro de Mello, que foi eleita uma comissão especificamente mandatada para tratar, com urgência, dos trabalhos preliminares necessários àquela concretização e dar conta dos seus resultados, numa próxima assembleia. Essa comissão ficou constituída pelos “seguintes cavalheiros”: pelo Grupo Lawn-Tennis do Prado: José Meneres, Jayme Lopes e Guilherme Felgueiras; pelo Grupo Lawn-Tennis de Matosinhos: Dr. Eduardo Torres, Arthur Nugent e José Barbosa; pelo Grupo Leixões Foot-Ballers: Dr. Pedro de Souza, Durval Martins, Eurico Felgueiras e Henrique Caneiro de Mello.

A mais simples análise desta comissão revela, no imediato, uma significativa assimetria: enquanto os dois grupos Lawn-Tennis tinham, cada um, três representantes, o grupo Foot-Ballers tinha quatro representantes, traduzindo, por ventura, e desde o começo, uma maior população de associados, maior expansão e, presumivelmente uma também maior popularidade.

Na primeira reunião desta Comissão (que se realizou de imediato, naquela mesma quinta-feira) enquanto os “Grupos Lawn-Tennis” achar-se-iam representados e mandatados, o mesmo não sucedeu com os do Leixões Foot-Ballers, pelo que, estes últimos, ficaram de convocar uma reunião geral do Leixões Foot-Ballers para decidirem qual a posição a tomar.

Tal Assembleia-geral do Leixões Foot-Ballers onde foi apresentada a proposta dos outros dois, realizou-se ainda em Novembro, sob a presidência do Dr. Pedro Souza e secretariado Eurico Felgueiras e Durval Martins.

Após alguma discussão sobre os prós e os contra, por unanimidade foi então resolvido aceitar a referida proposta para se fazer a fusão dos três grupos e a constituição de um novo Clube.

A Comissão Especial voltou, de imediato, a reunir e ao ser-lhe dado conhecimento das deliberações tomadas na Assembleia Geral do Leixões Foot-Ballers, foi considerada como definitivamente constituída a fusão dos três clubes no novo clube que passaria a chamar-se Leixões Sport Club.

A Comissão Instaladora do Leixões Sport Club, que desde a sua constituição, teve oito sessões preparatórias, na sua 8ª, e última, sessão realizada em 2 de Janeiro de 1908, procedeu finalmente, à convocação da histórica Assembleia Geral, para 8 de Janeiro, para aprovação dos Estatutos e eleição dos primeiros Corpos Gerentes do Leixões Sport Club.

Ficar a conhecer os nomes dos indivíduos que fizeram parte dos primeiros Corpos Directivos do Leixões Sport Club constituirá uma curiosidade bem justificável, mas também uma grande surpresa, acrescentamos nós, pois uma vez a realidade superou toda e qualquer ficção! Quem haveria de imaginar?! O primeiro Presidente da Direcção do Leixões Sport Club foi um cavalheiro de nome Hermann Furbringer!!

Por mais que procuremos encontra-lo, antes ou depois destas datas, não conseguimos “descortinar” rigorosamente nenhuma informação sobre uma tal personagem! Um verdadeiro e completo enigma!

No final de tão radiante assembleia, feita a proclamação dos eleitos (ver adiante) e após palavras de felicitações proferidas pelo Presidente, seguiram-se as aprovações dos seguintes votos: - voto de louvor à Direcção da Associação Comercial de Bouças, e em especial ao seu digno Vice-Presidente em exercício Sr. Afonso de Brito, pela cedência da sala para a realização das duas Assembleias Gerais e de algumas das sessões da Comissão Instaladora.


- Dois votos de agradecimento, propostos pelo Sr. Guilherme Felgueiras sendo um ao Sr. Fraga Lamares pelo fornecimento gratuito de 200 exemplares impressos do projecto de Estatutos e o outro ao Sr. Manuel Ferreira Guimarães, pela cedência gratuita de vários impressos como: propostas de sócio, livros de quotas, convites para reuniões, subscritos, etc.
- Um voto de louvor por aclamação, à mesa da Assembleia, pela maneira acertada como dirigiu os trabalhos.


À saída levantaram-se entusiásticos vivas ao Leixões Sport Club. Das reportagens jornalísticas feitas na altura, é possível colher extractos bem elucidativos do que aconteceu assim como deduzir das mentalidades e dos planos futuros dos fundadores do Leixões Sport Club. Por isso, alguns merecem ficar registados. « A ideia do Leixões Sport Club há-de frutificar, pois está merecendo o apoio, os louvores e o auxilio de todos os que se interessam verdadeiramente pelo futuro da nossa bela terra. »

Acerca das ideias que presidiram à constituição desse novo clube, pode depreender-se claramente dos termos dos oficio que a dita Comissão endereçou ao Centro Regenerador Liberal Dr. José Domingues de Oliveira a solicitar-lhes o aluguer das instalações para a sede do Leixões Sport Club:

« Pretendem os fundadores do novo clube aumentar consideravelmente o número dos seus sócios, que presentemente é já quase de 100, e não só cultivarem nele quaisquer géneros de sport, como cuidarem de tudo quanto seja conducente ao desenvolvimento physico e intellectual dos associados, proporcionando-lhes recreios e distracções e cuidando por todos os meios legais do engrandecimento desta terra, de sua natureza tão bella e que reúne excepcionais condições de rápida prosperidade.

A educação physica, hoje tão preconizada como um elemento essencial para a boa hygiene e robustez do individuo, encontrará, assim, no nosso meio onde realizar-se e expandir-se. »

Daqui se depreende, clarissimamente, e nunca será de mais realçar, que dos objectos fundadores faziam parte não só o desenvolvimento físico e intelectual dos seus associados, como ainda cuidar, por todos os meios legais, do “engrandecimento desta terra de sua natureza tão belia”.

Seria bom, pois, termos sempre presente que o Leixões Sport Club nasceu, em 1907, voltado para os seus associados, mas, simultaneamente, ao serviço do engrandecimento de Matosinhos.

« Com bem fundadas razões, a Direcção do Leixões Sport Club merece felicitações pelo brilhantismo que soube imprimir à sua festa desportiva inicial realizada no domingo, e que constou de “um match de Foot-Ball entre os 1º e 2º teams do Foot-Ball Club do Porto e os 1º e 2º teams do Leixões Sport Club. »

« Ao meio dia, quando começou o “match” encontravam-se no vasto campo do Leixões Sport Club, situado na Rua Conde Alto Mearim, além de quase todos os sócios, grande numero de convidados entre os quais muitas senhoras, vendo-se representadas as mais distintas famílias de Matosinhos, Leça da Palmeira, Foz e ainda muitas do Porto que quiseram aproveitar o ensejo de assistir a uma bela festa de Sport. »

De uma verdadeira imponência foi a récita festiva igualmente promovida pelo Leixões Sport Club e realizada no Theatro Constantino Nery, na noite de quintafeira, dia 20 de Fevereiro de 1908.

Merece, sem sombra de duvida, que se recorde tão interessante festa, para cujo êxito contribuíram pessoas que, generosamente, ofertaram os seus anónimos dotes artísticos, contribuindo para que ela também faça parte integrante do “imaginário” agradável da odisseia generosa que foi a edificação do Leixões Sport Club.

Seria uma tremenda injustiça e ingratidão não deixar mencionados, para a posterioridade, os seus nomes e as suas participações, como provas do espírito de generosidade, camaradagem e convivência social que então existiam, bem diferentes da actualidade. Nos tempos que correm, pese o que pesar, um tal espectáculo, com tais características e riqueza de programa, e com tamanha participação, em especial de senhoras, jamais seria factível.

« Tomaram parte na récita as Sras. D. Beatriz Lages, D. Maria Leonor Allen Souto, D. Maria José Allen Souto e D. Conceição Lima, e os Srs. Falcão de Lima, Manuel Maia, Henrique Leite, António José da Costa, António de Oliveira Leite, Eurico Alexandrino, Rogério Lages, Diamantino Machado e Henrique Lobo Soares. Todos foram chamados repetidas vezes ao palco e todos receberam abundantes aplausos e flores.

Chamadas especiais tiveram o ensaiador, Sr. Falcão de Lima, o ponto Sr. Carlos Braga, o autor da comédia em verso “A Promessa”, Sr. Campos Monteiro e o autor do Monólogo “A Propos”, Sr. Durval Martins.

O programa desempenhado foi o seguinte: “A Propos”, monólogo de Durval Martins, por António Oliveira Leite; “Roca de Hércules”, de Pinheiro Chagas, por D. Beatriz Lages e Manuel Maia; “ A Lágrima”, de Guerra Junqueiro, por D. Beatriz Lages; “A Mentira”, de Marcelino de Mesquita, por D. Beatriz Lages e D. Conceição Lima e Srs. Falcão de Lima, Manuel Maia, e Eurico Alexandrino; “Rosas de Todo o Ano”, de Júlio Dantas, por D. Beatriz Lages, D. Maria José Allen Souto e Srs. António Costa, Manuel Maia, Henrique Leite, António de Oliveira Leite, Rogério Lages e Diamantino Machado; e ainda trechos de musica clássica em violino excêntrico pelo sr. Henrique Lobo Soares.

Em substituição da Banda do regimento de Infantaria 18 que, por ordem do Ministério da Guerra, não pode comparecer, em consequência do luto oficial (em Fevereiro de 1908 o rei D. Carlos e o seu filho mais velho Luís Filipe haviam sido assassinados, em Lisboa) apresentou-se a também excelente banda do Asylo Profissional do Terço, tendo sido justamente aplaudida. »

Até estes últimos pormenores históricos são inequivocamente instrutivos e dignos de ficarem registados.

Informação retirada do Livro “Leixões Sport Club Marcos importantes da sua História”

Autor Belmiro Esteves Galego